
1. INTRODUÇÃO
Em que pese ainda não ser um instituto devidamente codificado, a aplicabilidade da teoria da Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance no direito brasileiro, notadamente nas relações de consumo, mostra-se um tema deveras importante por ser amplamente utilizado pelos tribunais brasileiros na decisão de seus julgados nos dias atuais.
Por este motivo, o presente artigo, tem por mote a análise de como a citada teoria tem sido abordado por doutrinadores brasileiros bem com da sua aplicação nas decisões dos tribunais em âmbito nacional, notadamente nas fundamentações e/ou reconhecimento de decisões e julgado de ações com fulcro nas relações de consumo.
Sendo inicialmente feita uma abordagem acerca da responsabilidade civil em âmbito geral e nas relações de consumo, fazendo posteriormente uma análise conceitual acerca da teoria da perda de uma chance, necessária para a perfeita compreensão do presente trabalho, bem como a sua aplicabilidade no direito comparado e no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente nas ações que tenham por matéria o código de defesa do consumidor.
Para tanto, foram utilizados métodos de pesquisas em artigos disponíveis em sites especializados em temas jurídicos, publicações de artigos científicos acerca do presente tema, julgados de tribunais superiores, bem como em doutrinas, sendo estas últimas de grande auxílio para a consecução do presente trabalho.
2. ASPECTOS GERAIS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL
O termo “responsabilidade” origina-se da ideia de responsabilização ou reparação devida, em face de um dano causado em virtude de uma ação ou omissão, podendo este dano ser de cunho moral ou material o qual necessita ser consequentemente e obrigatoriamente reparado, compelindo o agente causador do dano a obrigação de satisfazer ou executar um ato jurídico préviamente pactuado entre as partes.
Nas palavras de Rui Stoco:
“A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana” (STOCO, 2011, p.114).
Ainda acerca do tema, Silvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2011, p.101), afirma que: “O termo responsabilidade é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato ou negócio danoso”.
Deste modo, constata-se que a responsabilidade surge ou se personifica com a prática de uma ação diversa daquela que fora previamente pactuada ou expressamente definida em norma jurídica, que resulte em um dever de indenizar por algum dano causado a outrem.
De posse de tal entendimento, pode-se então avançar em busca da identificação dos elementos caracterizadores da responsabilidade civil, quais sejam a conduta culposa do agente, o dano ou prejuízo suportado por pessoa diversa e, finalmente, o nexo de causalidade que relaciona os dois elementos anteriores.
Como conduta, entende-se aquele ato ou ação perpetrada por determinado agente, em regra, de forma voluntária, conforme definido por Flávio Tartuce, abaixo transcrito:
“A regra é a ação ou conduta positiva, já para a configuração da omissão é necessário que exista o dever jurídico de praticar determinado ato, bem como a prova de que a conduta não foi praticada. Em reforço, para omissão é necessário ainda a demonstração de que, caso a conduta fosse praticada, o dano poderia ter sido evitado” (TARTUCE, 2013, p. 443)
O dano, como segundo pressuposto para a caracterização da responsabilidade civil, conceitua-se, segundo Venosa (VENOSA, 2011, p. 39): “no prejuízo suportado pelo indivíduo, prejuízo este que pode ser tanto individual como coletivo, bem como material ou moral”.
Neste sentido, Flávio Tartuce (TARTUCE, 2013, p. 458) aponta a existência de responsabilidade civil sem dano, ressaltando-os como novos ou contemporâneos, sendo eles dano estético, dano moral coletivo, dano social e dano por perda de uma chance.
Referente ao nexo de causalidade, pode-se definir como sendo o vínculo entre a conduta ilícita e o dano, ou seja, o dano deve decorrer diretamente da conduta ilícita praticada pelo individuo, sendo pois consequência única e exclusiva dessa conduta. O nexo causal é elemento necessário para se configurar a responsabilidade civil do agente causador do dano.
Finalmente, tem-se a culpa como último elemento necessário para a caracterização da responsabilidade civil e sobre tal elemento Calos Roberto Gonçalves citando Antunes Varela, discorre da seguinte forma:
“Agir com culpa significa atuar o agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação de direito. E o agente só pode ser pessoalmente censurado, ou reprovado na sua conduta, quando, em face das circunstâncias concretas da situação, caiba a afirmação de que ele poderia e devia ter agido de outro modo. (GONÇALVES, 2012, p. 296).
Em que pese a responsabilidade civil objetiva, pautada na teoria da culpa, se mostrar como regra geral em nosso ordenamento jurídico pátrio, cabe salientar que a possibilidade de existência de responsabilidade sem necessariamente existir o elemento culpa, resultando neste modo, a responsabilidade civil objetiva, prevista no Art. 927, do Código Civil, abaixo transcrito:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Vislumbra-se, deste modo, a responsabilidade civil pautada na teoria do risco, pois o que se mostra verdadeiramente relevante no caso concreto é a periculosidade da atividade, bem como a natureza de como esta é desenvolvida pelo agente danoso, tornando-se assim, desprezável a configuração do elemento culpa para a caracterização da responsabilidade civil objetiva.
2.1. Responsabilidade Civil sob a égide do Código de Defesa do Consumidor
A Lei n° 8.078/90, popularmente conhecido como Código de Defesa do Consumidor ou apenas CDC, que possui base consagrada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, XXXIII, é uma lei principiológica, tendo em vista, trazer em seu bojo princípios gerais que abordam, de forma ampla, todas as situações de que envolvem relação de consumo, sendo considerado, portanto, um sistema de cláusulas abertas.
O CDC surgiu com o intento de condensar as disposições existentes acerca dos direitos dos consumidores, listando os atores que compõem a relação de consumo, os direitos e deveres de cada ator, os princípios norteadores que regem as relações de consumo, bem como as penas impostas aqueles que não cumprirem as disposições constantes no citado código.
Resumidamente, a grande característica do CDC é a de delimitar explicitamente os direitos dos consumidores, bem como a responsabilidade dos fornecedores na ocorrência de violação desses direitos, nascendo assim a responsabilidade das relações de consumo, consagrando deste modo um novo campo da responsabilidade civil.
A regra do sistema civil brasileiro é o da responsabilização civil subjetiva, ou seja, comprovada a culpa do agente pelo fato danoso, o agente tem o dever de indenizar, pois deriva de uma relação contratual, ou seja, aquela em que há uma obrigação anterior entre as partes, que se descumprida, gera o dever de indenizar. Contudo, nas relações consumeristas existe também a incidência da responsabilidade civil, porém de forma objetiva por parte dos fornecedores, onde é exigido apenas o nexo de causalidade entre o dano e a ação do agente.
Destarte, o CDC procurou descrever as diversas hipóteses de responsabilidade que podem ocorrer na relação consumerista, descriminando duas diferenças e especificidades peculiares. Nos exatos termos dos artigos 13 e 14 do citado Código, identifica-se de forma específica a responsabilidade pelo fato de produto ou serviço, o qual é perfeitamente definido por Sérgio Cavalieri Filho:
“(...) fato do produto é um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto. Seu fato gerador será sempre um defeito do produto;” (FILHO, 2012, p.519)
Assim, a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, é evidenciado por um acidente de consumo que atinge o consumidor ou terceiros, notadamente em sua segurança ou a saúde, recaindo sobre o fornecedor o dever de indenizar pelos prejuízos causados, ensejando aos terceiros prejudicados pelo fato do produto ou serviço a possibilidade de ação judicial, mesmo não sendo consumidores em sentido “strictu senso”.
A responsabilidade civil pelo vício do produto ou serviço é tratado no CDC nos artigos 18 a 20. Neste caso, o vício ocorre por falha na qualidade ou quantidade do produto, ensejando ao consumidor o direito a ser sanado em seu prejuízo oriundo de tal vício, conforme leitura feita abaixo dos citados artigos:
Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
(...)
Art. 19. Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
(...)
Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
(...)
Urge salientar que, ambos os casos de vício descritos no CDC é determinada de forma indubitável que os fornecedores respondem solidariamente por todo e qualquer vício de qualidade ou quantidade dos produtos comercializados pelos mesmos, ou seja, tanto comerciante quanto distribuidor, fabricante, importador ou qualquer outro fornecedor pertencente à cadeia de fornecimento de determinado produto será responsabilizado solidariamente a indenizar o consumidor por eventual dano material.
3. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
3.1. Conceito
Para Sérgio Cavalieri Filho a perda de uma chance caracteriza-se quando:
“[…] Caracteriza-se essa perda de uma chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um benefício futuro para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumando um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante. Deve-se, pois, entender por chance a probabilidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda.” (CAVALIERI FILHO, 2012, p.81)
Não obstante, Flávio Tartuce (TARTUCE, 2013, p. 425), igualmente entende caracterizada a teoria da perda de uma chance: “quando a pessoa vê frustrada uma expectativa, uma oportunidade futura que, dentro da lógica do razoável, ocorreria se as coisas seguissem o seu curso normal”.
Carlos Roberto Gonçalves ao tratar da responsabilidade civil do advogado, conceitua a teoria da perda de uma chance da seguinte forma:
“Aspectos relevantes no estudo da responsabilidade civil do advogado é o que diz respeito a sua desídia ou retardamento na propositura de uma ação judicial. Utiliza-se nesses casos, a expressão ‘perda de uma chance’, como nos casos de responsabilidade civil dos médicos tratado na Seção III, retro, n. 12, simbolizando, aqui, a perda, pela parte, da oportunidade de obter, no Judiciário, o reconhecimento e a satisfação íntegra ou completa de seus direitos.” (GONÇALVES, 2012, p. 223).
De fato, a teoria da perda de uma chance é uma criação doutrinaria a qual afirma que, em havendo um clara mitigação, por culpa de outrem, de um determinado fato esperado pela vítima que consequentemente venha impedir também o aferimento de algum benefício ou lucro, ou mesmo evitar uma desvantagem, gera à vítima o direito a reparação ao dano por parte do agente causador, haja vista uma expectativa ter sido frustrada por ação deste.
Deve-se frisar, contudo, que a citada expectativa ou chance deve ser séria e real, superior a 50% (cinquenta por cento), que possibilite a pessoa do lesado, inequívocas condições pessoais de concorrer a determinada situação futura esperada e que, em não ocorrendo, evidencia-se um prejuízo material ou imaterial resultando do fato consumado, não hipotético.
Na presente teoria, a reparação que se busca não é a dos valores que poderiam ter sido obtidos se determinada ação tivesse sido praticado pelo agente responsável ou o serviço que, contratado junto a outrem, por este não foi realizado. O que se busca de fato é a reparação pela subtração da possibilidade de se ter obtido um determinado valor ou serviço que, diante de determinada situação específica com chances sérias e reais, poderia o lesado, dentro da razoabilidade, obter êxito.
Por tal motivo, entende-se a teoria da perda de uma chance como espécie de dano emergente e não de lucro cessante, já que consiste na perda de possibilidade de obtenção do êxito e não na perda do êxito propriamente dito.
Neste sentido, Sérgio Savi, citando Adriano De Cupis, afirma que:
“A vitória é absolutamente incerta, mas a possibilidade de vitória, que o credor pretendeu garantir, já existe, talvez em reduzidas proporções, no momento em que se verifica o fato em função do qual ela é excluída: de modo que se está em presença não de um lucro cessante em razão da impedida futura vitória, mas de um dano emergente em razão da atual possibilidade de vitória que restou frustrada.” (SAVI, 2006, p.27).
3.2. Origem Histórica e aplicação no direito comparado
A presente construção doutrinária da responsabilidade civil pela perda de uma chance teve seu surgimento na França, expandindo-se posteriormente para os demais países europeus, notadamente a Itália. Porém somente na década de 1960, foi efetivamente utilizada em uma lide inicialmente ligando-a a área médica, a qual versava sobre a responsabilidade civil de um médico, que teria realizado um diagnóstico equivocado, resultando na retirada de chances de cura ou de sobrevivência de um determinado paciente.
Sobre tal caso, Janaína Rosa Guimarães (GUIMARÃES, 2009, p.152), detidamente explicita que a citada decisão inaugurou, no ordenamento jurídico francês, os fundamentos da teoria da perda de uma chance e ocorreu na 1ª Câmara da Corte de Cassação, quando da reapreciação de um determinado caso julgado pela Corte de Apelação de Paris, em julho de 1964, em que o acusado, um médico, fora condenado ao pagamento de uma indenização no valor de 65.000 francos, em virtude de ter cometido falta grave contra as técnicas médicas, considerando desnecessária a amputação dos braços de uma criança para que pudesse facilitar o parto, entendendo a corte francesa pelo erro no diagnóstico dado pelo médico, que teve por resultado um tratamento igualmente errado.
Com tal precedente, a França passou a adotar a teoria da perda de uma chance e, posteriormente, toda a Europa igualmente passou a utilizá-la, notadamente a Itália, onde após aprofundados estudos, passou a ganhar espaço, sendo considerado como o primeiro caso a ser julgado com base na presente teoria, a ação movida pelos candidatos que foram impedidos de participar de um processo seletivo realizado por uma empresa para contratação de motoristas em 1983, na ocasião em que foi arguida, pelos candidatos a perda da oportunidade de realizar os exames necessários para admissão no emprego. A ação, em último grau, sentenciou no sentido de que havia responsabilidade civil pela perda de uma chance, já que restou comprovado a perda da possibilidade dos candidatos lograrem o resultado útil ao direito de participarem das provas e alcançar o objetivo que era o emprego.
A teoria da perda de uma chance também ganhou espaços nos julgados das cortes de países do common Low, como na corte norte-americana, quando da apreciação do caso Herskovits v. Group Health Cooperative of Puget Sound, que julgou caso de responsabilidade civil pela perda de uma chance na área médica.
No presente caso, julgou-se a falha em diagnosticar prontamente o câncer pulmonar do paciente, no que veio a reduzir as possibilidades de chances de sobrevivência de 39% para 25%.
Ainda que, no caso em tela, as chances de sobrevivência fossem inferiores a 50%, a corte americana entendeu pela condenação da ré, pois creditou o ato negligente deste à redução de possibilidade de sobrevivência do paciente.
4. APLICABILIDADE DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O Código Civil brasileiro, não trás de forma expressa a responsabilidade civil pela perda de chance, no entanto é possível encontrar com dada facilidade julgados de tribunais superiores referente a este tema, trazendo como fundamentação, posicionamentos doutrinários pátrios ou alienígenas, ou mesmo julgados análogos ao caso concreto apreciado.
Como exemplo da sua aplicação nas decisões jurisprudenciais, pode-se verificar a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reconhecido pela doutrina como um dos primeiros julgado acerca do presente tema prolatado pelo desembargador Ruy Rosado Aguiar Júnior e que possui a seguinte teor:
Responsabilidade civil. Advogado. Perda de uma chance. Age com negligência o mandatário que sabe do extravio dos autos do processo judicial e não comunica o fato à sua cliente nem trata de restaurá-los, devendo indenizar à mandante pela perda de uma chance. (TJRS, 5ª Câmara Cível, Apelação Cível nº. 591064837, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julgado em 29/08/1991).
Os estudos sobre o presente tema são ainda considerados tímidos no direito pátrio, no entanto, vem galgando, com o passar os anos, cada vez mais espaços em doutrinas e artigos, sendo constantemente objeto de discussão no meio acadêmico.
Já na esfera jurisprudencial, em que pese ser possível identificar em alguns julgados a presente construção doutrinária sendo aplicada de forma diversa, quanto a sua natureza, daquela definida em seu cerne, ou seja, de dano emergente, é possível notar um crescimento acentuado de demandas judiciais envolvendo a aplicação da teoria da perda de uma chance, bem como o seu reconhecimento por diversos Tribunais como fulcro de pleitos por danos morais ou materiais.
5. APLICABILIDADES DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE NAS RELAÇÕES CONSUMERISTAS
Após todo o exposto acerca da teoria da perda de uma chance, mister se faz a sua análise neste momento, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor e, de que modo vem sendo aplicada a citada teoria por parte do tribunais, nas lides que versão sobre relações de consumo.
Como regra o Código de Defesa do Consumidor trás em seu bojo, notadamente nos artigos de 13 e 14, bem como nos artigos 18 a 20, a responsabilidade civil objetiva pelo fato e vício do produto ou serviço que, por seu turno, é fundada na Teoria do Risco, ou seja, nas relações jurídicas entre consumidor e fornecedor a comprovação de culpa do agente causador do dano é desnecessária, pois aquele que expora a atvidade economica, deverá arcar com ônus causado por esta exploração, mesmo não tendo concorrido para a ocorrência do dano.
No entando o CDC, em seu artigo art. 14, §4º, considera que nas relações consumeristas envolvendo profissionais liberais, a responsabilidade civil será subjetiva.
Hoje na jurisprudência brasileira, é possível verificar diversos exemplos da aplicação da teoria da perda de uma chance nas relações consumeristas, seja relacionada a responsabilidade civil objetiva, como nas relações de compra e venda ou prestação de serviço, ou relacionadas a responsabilidade civil subjetiva, tratando-se então das lides envolvendos médicos ou adovogados.
Como exemplo de ação cuja materia versa sobre prestação de serviço na esfera consumerista, mais precisamente na demora no atendimento a paciente, que teve como resultado o óbito deste, caracterizando com isso o fato do produto ou serviço, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entendeu pela aplicação da teoria da perda de uma chance, pois, se o atendimento prestado tivesse ocorrido de forma ágil e eficaz, o paciente pudesse sobreviver. Vejamos:
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (3.Câmara). Civil. Embargos infringentes. Responsabilidade civil de entidade hospitalar. Casa de saúde e maternidade. Óbito de recém-nascido. Apnéia idiopática seguida de paradas cardiorrespiratórias. Demora no encaminhamento do paciente para unidade de terapia intensiva. Serviço hospitalar defeituoso. Fato do serviço caracterizado. Indenização. Dano material e moral. Responsabilidade civil objetiva. Teoria da “perda de uma chance”. Recurso conhecido e provido. Embargos Infringentes nº 2002.005.00446. Relator: Desembargador Werson Rego. Rio de Janeiro, 3 de junho de 2003. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Restou caracterizado no julgado acima o fato do serviço, ou seja, devido a má prestação do serviço fornecido pelo Hospital no atendimento ao paciente, este veio a entrar em óbito. Neste caso foi verificada a existência do nexo de causalidade entre a ação do agente danoso e o dano propriamente dito, caracterizando deste modo a responsabilidade civil objetiva.
No mesmo sentido, porém em ação versando sobre responsabilidade civil objetiva de instituição de ensino, o Tribunal de Justiça do Espirito Santo entendeu pela aplicabilidade da perda de uma chance, conforme verifica-se:
EMENTA : APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS - SUJEIÇÃO ÀS REGRAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - PRECEDENTES DO STJ - TRANSFERÊNCIA PARA UNIVERSIDADE FEDERAL - EQUÍVOCO NA DISPONIBILIZAÇÃO DOS DOCUMENTOS SOLICITADOS POR ALUNO - FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - DANO - CONFIGURADO - PERDA DE UMA CHANCE - NEXO DE CAUSALIDADE - COMPROVAÇÃO - DESCUMPRIMENTO DE REGRA NORMATIVA DO MEC - ERRO INESCUSÁVEL - INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAIS - RECURSO IMPROVIDO. [...] 2. A aplicação das regras consumeristas implica no reconhecimento da responsabilidade objetiva do prestador de serviço, exigindo, assim, apenas a comprovação do dano e do nexo de causalidade para ensejar o dever de reparar. 3. A exclusão de candidato do concorrido processo seletivo de transferência para Universidade Federal, após vitoriosa aprovação nas avaliações teóricas, é suficiente para demonstrar a configuração do prejuízo, ao menos no seu aspecto material/financeiro por conta da gratuidade do ensino público superior federal. 4. Ademais, a constatação do dano também comporta análise sob o enfoque da teoria da perda de uma chance, pois é claro que a deficiência na documentação privou o aluno de concluir sua formação acadêmica em Universidade Federal, o que, em tese, lhe traria melhor qualificação curricular. [...]
(TJ-ES - APL: 00002663620108080002, Relator: TELEMACO ANTUNES DE ABREU FILHO, Data de Julgamento: 25/06/2012, QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/07/2012).
No caso em questão restou frustrada a pretensão da autora em ingressar em uma Universidade Federal, mesmo tendo sido aprovada em processo seletivo, em decorrência de falha na prestação de serviço de Instituição de Ensino em fornecer os documentos necessários, o que resultou na exclusão da autora do processo seletivo, estando configurado, deste modo, o nexo causal, entre a ação danosa e o prejuízo suportado pela consumidora, haja vista que lhe restou perdida a perda da chance de ingresso em Universidade Federal.
Para perfeita subsunção da teoria da perda de uma chance ao fato concreto, se faz necessário que a chance seja séria e real e não apenas mera expectativa de ganho. Assim vejamos o julgado abaixo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
APELAÇÃO CÍVEL. CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO. PERDA DE UMA CHANCE. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO BANCÁRIO. ERRO NO PAGAMENTO DA TAXA DE INSCRIÇÃO. CONCURSO PÚBLICO. ELIMINAÇÃO DA CANDIDATA. DANO HIPOTÉTICO NÃO INDENIZÁVEL. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor à controvérsia instaurada entre consumidora-autora, destinatária final econômica e fática do serviço bancário fornecido pela instituição financeira ré no mercado de consumo. No caso, houve falha na prestação do serviço bancário, que errou ao digitar o código de barras do boleto bancário relativo ao pagamento da taxa de inscrição no concurso público, o que acarretou a invalidação da inscrição da consumidora no certame. Para a incidência da teoria da perda de uma chance, que trata de nova forma de responsabilização civil, faz-se necessário que a chance perdida por ato ilícito seja séria e real e que proporcione ao lesado efetivas condições de concorrer à situação futura esperada. A chance perdida da consumidora de participar do concurso público e se tornar servidora pública é meramente hipotética, não cabendo indenização. Apelo conhecido e negado provimento.
(TJ-DF - APC: 20140310117050, Relator: HECTOR VALVERDE SANTANNA, Data de Julgamento: 05/08/2015, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 13/08/2015 . Pág.: 224)
Conforme verificou-se no correto julgado prolatado acima, ainda que se trata de uma relação de consumo em que restou constatada falha no serviço prestado pelo banco vindo o que resultou na invalidação da inscrição da autora em concurso público, não se mostra cabível a aplicação da teoria da perda de uma chance, já que não se pode garantir que a simples inscrição para participação em concurso público lhe garantiria a conquista da vaga, tratando-se neste caso de mera hipótese.
Acerca da responsabilidade civil subjetiva do profissional liberal, assim definida no Código de Defesa do Consumidor, e a aplicação da teoria da perda de uma chance, temos o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
APELAÇÃO - INDENIZAÇÃO - ERRO DE DIAGNÓSTICO - DANOS MATERIAIS E MORAIS - PEDIDO IMPROCEDENTE. - A responsabilidade civil do médico, ainda que prevista no Código de Defesa do Consumidor, não deixou de ser subjetiva ou aquiliana, exigindo a prova do dano e a culpa do médico, embora não se negue a existência de um contrato de prestação de serviços entre o médico e o paciente. V.v: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO DE DIAGNÓSTICO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. FRAGILIDADE DO NEXO CAUSAL. INVERSÃO OPE LEGIS DO ÔNUS DA PROVA. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. APLICABILIDADE. ERRO LOGO APÓS A LESÃO. 1 - A responsabilidade do médico, na qualidade de profissional liberal, é subjetiva, nos termos do art. 14, § 4º do CDC. Já quanto o hospital, exige-se que seja examinada a origem do afirmado dano: se o dano deriva da conduta médica, a responsabilidade do hospital segue também o regime da responsabilização subjetiva. Por outro lado, se o dano advier de falha na prestação de serviço diverso - como do serviço de hotelaria, cujas condições de higiene favorecem as infecções hospitalares - a responsabilidade do hospital será objetiva, nos termos do caput do artigo. [...] 4 - Em casos em que não se pode estabelecer com segurança o nexo causal entre a culpa profissional e o dano, mostra-se útil a adoção da teoria da perda de uma chance, que busca reparar não a lesão em si, mas a perda de uma chance de evitar que o resultado adverso se produza. Transportada para a responsabilidade médica, a referida teoria se tornou conhecida como perda de uma chance de cura. [...] (Des. José Marcos Vieira)
(TJ-MG - AC: 10471070854065001 MG, Relator: José Marcos Vieira, Data de Julgamento: 06/02/2014, Câmaras Cíveis / 16ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/02/2014)
Constata-se no presente julgado que, ainda que se trate de responsabilidade civil subjetiva, requerendo com isso a necessidade de comprovação de culpa por parte do prestador de serviço e agente causador do dano, vislumbra-se possível o perfeito amoldamento da teoria da perda de uma chance ao caso concreto.
Ainda sobre o mesmo tema, o Superior Tribunal de Justiça, manifestou-se da seguinte forma:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO (ART. 544 DO CPC)- AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS - ERRO MÉDICO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO HOSPITAL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO AGRAVO. INSURGÊNCIA DA RÉ. 1. É plenamente cabível, ainda que se trate de erro médico, acolher a teoria da perda de uma chance para reconhecer a obrigação de indenizar quando verificada, em concreto, a perda da oportunidade de se obter uma vantagem ou de se evitar um prejuízo decorrente de ato ilícito praticado por terceiro. [...].
(STJ - AgRg no AREsp: 553104 RS 2014/0181732-7, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 01/12/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/12/2015)
Verifica-se no presente julgado que, a decisão prolatada harmoniza-se com o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance, na responsabilidade civil subjetiva.
Em que pese a teoria da perda de uma chance estar sendo amplamente aplicada às relações de consumo em nosso ordenamento pátrio por seus julgadores, como restou provado até aqui, verifica-se, em alguns casos, divergência no entendimento acerca do citado tema.
Como dito anteriormente, o código Civil não trouxe expressamente em seu texto a responsabilidade civil pela perda de uma chance, cabendo então aos doutrinadores e a jurisprudência a sua definição e aplicabilidade, respetivamente.
Ocorre que, em determinados julgados verifica-se a aplicação da teoria da perda de uma chance fundada em um entendimento contrário ao entendimento doutrinário vigente, conforme se vê:
CIVIL. PROCESSO CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. NÃO CABIMENTO. CADEIA PRODUTIVA. SOLIDARIEDADE. INEXEQUIBILIDADE DA SENTENÇA. LIMITAÇÃO DO VALOR MÁXIMO DA MULTA. VALOR DO IMÓVEL. LUCROS CESSANTES. PERDA DE UMA CHANCE. REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA. 1 - Estando-se diante de um típico fornecedor, de um consumidor padrão e de um produto, não existe impedimento a se aplicar o Código de Defesa do Consumidor. [...]4 - Quanto aos lucros cessantes, são devidos, já que estamos diante da “perda de uma chance” e que não se confundem com os danos emergentes (os alugueres efetivamente pagos), estes sim não cabíveis. [...]
(TJ-DF - APC: 20110111292092 DF 0035175-03.2011.8.07.0001, Relator: GILBERTO PEREIRA DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 22/10/2014, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 03/11/2014 . Pág.: 145)
No caso em questão, verificou-se a aplicação da perda de uma chance, porém, na qualidade de lucro cessante, ou seja, aquilo que se deixou de ganhar, e não como dano emergente, sendo aquilo que efetivamente perdeu, atingindo assim o cerne a construção doutrinária acerca do presente tema, a qual afirma que o que se perde é a chance ou possibilidade de se auferir um determinado lucro ou benefício e não o próprio objeto em si.
Portanto, conforme breves exposições e análises doutrinárias e jurisprudenciais acerca do presente tema, conclui-se que a responsabilidade civil pela perda de uma chance tem se amoldado e sido amplamente reconhecida nas decisões jurisprudenciais, notadamente nas lides que versam sobre matéria afeita ao Código de Defesa do Consumidor.
Em que pese alguns julgadores entenderem e aplicarem de forma diversa ou equivocada a teoria da perda de uma chance, em sua grande maioria tem se firmado um entendimento pacificado possibilitando que, futuramente, por intermédio de decisões reiteradas dos Tribunais, possa ser expressamente inserida no âmbito do Direito do Consumidor.
6. CONCLUSÃO
No presente trabalho, foi abordado o tema responsabilidade civil pela perda de uma chance bem como a sua aplicabilidade nas lides sobre relações de consumo, analisando precipuamente os aspectos gerais da responsabilidade civil, notadamente sob a égide do código de defesa do consumidor, perpassando sobre o conceito e aplicação da teoria da perda de uma chance no direito comparado bem como no ordenamento jurídico brasileiro, concluindo-se, enfim, que a citada teoria, em que pese a falta de regulamentação expressa em lei, tem sido amplamente reconhecidas nas decisões jurisprudenciais em matéria consumerista.
Foram cumpridos todos os objetivos propostos, analisando a aplicabilidade da teoria da perda de uma chance nas relações consumeristas com ênfase em estudos de julgados de tribunais e de que forma a presente teoria tem sido aplicada em nosso ordenamento jurídico como fundamento de responsabilização civil.
Por óbvio que o presente trabalho não ambiciona esgotar o presente tema, contudo foi de grande relevância, na medida em que ilustrou a importância da aplicabilidade na teoria da perda de uma chance no meio social no que tange as relações de consumo, sendo necessário, contudo, não somente debates maiores sobre o referido assunto, mas, principalmente, uma regulamentação específica para que o instituto possa enfim se firmar definitivamente nas relações sociais em geral.
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